A 30 de julho de 2005 (faz hoje
8 anos), Portugal deixou morrer um jornal que havia completado 151 anos de
história: “O Comércio do Porto”. Era o mais antigo jornal do continente
português e a sua morte foi acompanhada da mais impávida indiferença por parte
dos meios culturais, políticos e económicos.
“O Comércio do Porto” foi fundado em 2 de junho
de 1854, saindo para as bancas com a designação de “O Commercio” e com
periodicidade trissemanal: às segundas, quartas e sextas-feiras. Custava 40
réis. Foram seus fundadores Henrique Carlos Miranda e Manuel Souza Carqueja e
sua linha editorial era clara: satisfazer a “necessidade sentida na praça do
Porto dum jornal de commercio, agricultura e industria, onde se tratem as
matérias económicas, históricas e instructivas”. Em 1855 passou a jornal diário
e, no ano seguinte, adotou a designação de “O Comércio do Porto”. Após o 25 de
abril de 1974 tornou-se um dos periódicos mais influentes em Portugal. As suas
tiragens chegaram a atingir os 120 mil exemplares diários.
Ao
ver desabar impavidamente (com todos a assobiar para o lado…) este que fora um
dos mais valiosos monumentos à cultura e à memória coletiva de Portugal,
percebi que o país estava a seguir um rumo estranho e perigoso, deslumbrado com
pequenos nadas, retirando dos minúsculos sucessos o efeito galvanizador das
grandes emoções. Um país a que ia faltando uma consciência orientadora
afeiçoada aos valores da excelência. Um país curvado, de cócoras, a pensar pela
medida estreita. Um país seduzido por “mitos triviais”, alimentado pelo frenesim
de minúsculos “fait-divers” televisivos e jornalísticos que ressoam num
sensacionalismo atroz, barato e oco. Um país onde o acessório e o efémero tomam
o lugar dos grandes projetos, das grandes doutrinas, dos grandes percursos.
“O
Comércio do Porto”, ao longo dos seus 151 anos marcou a diferença na imprensa
portuguesa. Foi a mais antiga escola de jornalismo. Nela aprenderam,
trabalharam e transmitiram saberes os melhores jornalistas e cronistas
portugueses. Entre os melhores contam-se figuras notáveis da vida cultural
portuguesa: Camilo Castelo Branco, Carolina Michaëlis, Guerra Junqueiro, João de Deus, Rodrigues de
Freitas, Joaquim Augusto Pires de Lima, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Maria
Amália Vaz de Carvalho, Alberto Pimentel, Júlio Dantas, Henrique Lopes de
Mendonça, Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, Augusto Gil , Fialho de
Almeida, Ramalho Ortigão e o próprio rei D. Carlos e a rainha D. Amélia, entre outros.
Desempenhando um papel hoje impensável no panorama da nossa imprensa, foi pioneiro na criação de escolas de formação profissional agrícola (contam-se doze instituições no norte e centro do País) por intermédio da revista “O Lavrador”, assim como na construção do edifício da Academia Politécnica do Porto (percursora de várias faculdades da Universidade do Porto); e, no capítulo da solidariedade social, ajudou a construir creches na Afurada,em Vila Nova de Gaia, Lordelo do Ouro, Bonfim, Foz
do Douro e bairros operários em
Monte Pedral , Lordelo e Bonfim. Inaugurou o jornalismo de
investigação em Portugal. Atravessou regimes políticos complexos. Não se
intimidou com as ditaduras nem com a censura. Nas suas páginas conta-se a
história de Portugal em três séculos. É por isso um riquíssimo pilar de
património imaterial. Um fio condutor de memória que os novos tempos não
hesitaram em quebrar.
Desempenhando um papel hoje impensável no panorama da nossa imprensa, foi pioneiro na criação de escolas de formação profissional agrícola (contam-se doze instituições no norte e centro do País) por intermédio da revista “O Lavrador”, assim como na construção do edifício da Academia Politécnica do Porto (percursora de várias faculdades da Universidade do Porto); e, no capítulo da solidariedade social, ajudou a construir creches na Afurada,
Muitos
de nós aprendemos a soletrar nas páginas deste jornal. Muitas vezes o li em
bicos de pés tentando chegar ao balcão da velha mercearia, na aldeia onde vivi,
no Alto Douro. Os olhos sugavam as notícias com o ímpeto de quem procura,
ousadamente, descobrir um mundo que está para além da nossa rua, dos nossos
vinhedos, da nossa terra.
Longe
estava eu de adivinhar que, mais tarde, na verdura dos anos 80, também me iria
tornar jornalista deste centenário jornal. Assim aconteceu. Integrei o seu
quadro redatorial durante quase duas décadas. Ocupava então um dos edifícios
mais nobres da cidade do Porto, na Avenida dos Aliados. Era um jornalismo de
causas. E nós, uma espécie de cavaleiros andantes na busca das grandes histórias
que, só mesmo lá, no local, se poderiam recolher. Como jornalista, trabalhei
sobretudo nas regiões isoladas, subdesenvolvidas. Lavrador de condição,
sentia-me aí um ousado lavrador de palavras, um herói de papel, “manietado”
apenas pelo aprumo dos velhos “linguados”. Percorri muitos recantos de
Trás-os-Montes na busca das melhores reportagens. Desbravei léguas de silêncios
como quem rasga a textura densa de uma floresta virgem. Porque o jornalismo é
isso mesmo: a arte de romper silêncios. Foram tempos em que o jornalismo tinha
sempre o encanto da novidade e, sobretudo, o romantismo das causas solidárias.
Tempos em que levar a “carta a Garcia” era, antes que tudo, assinar um contrato
com o desconhecido, com o imprevisível. Tempos em que o jornalismo nas regiões
do interior era, ele mesmo, a novidade, a notícia. Tempos inesquecíveis.
Alexandre Parafita