terça-feira, 30 de julho de 2013

Agarrar a notícia: “O Comércio do Porto”


A 30 de julho de 2005 (faz hoje 8 anos), Portugal deixou morrer um jornal que havia completado 151 anos de história: “O Comércio do Porto”. Era o mais antigo jornal do continente português e a sua morte foi acompanhada da mais impávida indiferença por parte dos meios culturais, políticos e económicos.

“O Comércio do Porto” foi fundado em 2 de junho de 1854, saindo para as bancas com a designação de “O Commercio” e com periodicidade trissemanal: às segundas, quartas e sextas-feiras. Custava 40 réis. Foram seus fundadores Henrique Carlos Miranda e Manuel Souza Carqueja e sua linha editorial era clara: satisfazer a “necessidade sentida na praça do Porto dum jornal de commercio, agricultura e industria, onde se tratem as matérias económicas, históricas e instructivas”. Em 1855 passou a jornal diário e, no ano seguinte, adotou a designação de “O Comércio do Porto”. Após o 25 de abril de 1974 tornou-se um dos periódicos mais influentes em Portugal. As suas tiragens chegaram a atingir os 120 mil exemplares diários.

Ao ver desabar impavidamente (com todos a assobiar para o lado…) este que fora um dos mais valiosos monumentos à cultura e à memória coletiva de Portugal, percebi que o país estava a seguir um rumo estranho e perigoso, deslumbrado com pequenos nadas, retirando dos minúsculos sucessos o efeito galvanizador das grandes emoções. Um país a que ia faltando uma consciência orientadora afeiçoada aos valores da excelência. Um país curvado, de cócoras, a pensar pela medida estreita. Um país seduzido por “mitos triviais”, alimentado pelo frenesim de minúsculos “fait-divers” televisivos e jornalísticos que ressoam num sensacionalismo atroz, barato e oco. Um país onde o acessório e o efémero tomam o lugar dos grandes projetos, das grandes doutrinas, dos grandes percursos.

“O Comércio do Porto”, ao longo dos seus 151 anos marcou a diferença na imprensa portuguesa. Foi a mais antiga escola de jornalismo. Nela aprenderam, trabalharam e transmitiram saberes os melhores jornalistas e cronistas portugueses. Entre os melhores contam-se figuras notáveis da vida cultural portuguesa: Camilo Castelo Branco, Carolina Michaëlis, Guerra Junqueiro, João de Deus, Rodrigues de Freitas, Joaquim Augusto Pires de Lima, Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Maria Amália Vaz de Carvalho, Alberto Pimentel, Júlio Dantas, Henrique Lopes de Mendonça, Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, Augusto Gil, Fialho de Almeida, Ramalho Ortigão e o próprio rei D. Carlos e a rainha D. Amélia, entre outros.

Desempenhando um papel hoje impensável no panorama da nossa imprensa, foi pioneiro na criação de escolas de formação profissional agrícola (contam-se doze instituições no norte e centro do País) por intermédio da revista “O Lavrador”, assim como na construção do edifício da Academia Politécnica do Porto (percursora de várias faculdades da Universidade do Porto); e, no capítulo da solidariedade social, ajudou a construir creches na Afurada, em Vila Nova de Gaia, Lordelo do Ouro, Bonfim, Foz do Douro e bairros operários em Monte Pedral, Lordelo e Bonfim. Inaugurou o jornalismo de investigação em Portugal. Atravessou regimes políticos complexos. Não se intimidou com as ditaduras nem com a censura. Nas suas páginas conta-se a história de Portugal em três séculos. É por isso um riquíssimo pilar de património imaterial. Um fio condutor de memória que os novos tempos não hesitaram em quebrar.

Muitos de nós aprendemos a soletrar nas páginas deste jornal. Muitas vezes o li em bicos de pés tentando chegar ao balcão da velha mercearia, na aldeia onde vivi, no Alto Douro. Os olhos sugavam as notícias com o ímpeto de quem procura, ousadamente, descobrir um mundo que está para além da nossa rua, dos nossos vinhedos, da nossa terra.

 
Longe estava eu de adivinhar que, mais tarde, na verdura dos anos 80, também me iria tornar jornalista deste centenário jornal. Assim aconteceu. Integrei o seu quadro redatorial durante quase duas décadas. Ocupava então um dos edifícios mais nobres da cidade do Porto, na Avenida dos Aliados. Era um jornalismo de causas. E nós, uma espécie de cavaleiros andantes na busca das grandes histórias que, só mesmo lá, no local, se poderiam recolher. Como jornalista, trabalhei sobretudo nas regiões isoladas, subdesenvolvidas. Lavrador de condição, sentia-me aí um ousado lavrador de palavras, um herói de papel, “manietado” apenas pelo aprumo dos velhos “linguados”. Percorri muitos recantos de Trás-os-Montes na busca das melhores reportagens. Desbravei léguas de silêncios como quem rasga a textura densa de uma floresta virgem. Porque o jornalismo é isso mesmo: a arte de romper silêncios. Foram tempos em que o jornalismo tinha sempre o encanto da novidade e, sobretudo, o romantismo das causas solidárias. Tempos em que levar a “carta a Garcia” era, antes que tudo, assinar um contrato com o desconhecido, com o imprevisível. Tempos em que o jornalismo nas regiões do interior era, ele mesmo, a novidade, a notícia. Tempos inesquecíveis.

Alexandre Parafita