Numa das minhas frequentes andanças pelas escolas, ouvi um dia uma professora/contadora de histórias transmitir aos alunos uma interessante fábula, para mim então desconhecida. Contava ela sobre um cavalo que, estando preso a uma árvore e a tentar soltar-se a todo o custo para conseguir abeirar-se de um pasto num lameiro próximo, o Diabo passou por ali e, com pena do animal, soltou-o. O cavalo comeu o que pôde, e logo a mulher do lavrador, dono do lameiro, ao ver o prejuízo, pegou na caçadeira do marido e matou o animal. O dono do cavalo, enraivecido com tal crueldade, fez pior: pegou também na sua caçadeira e matou a mulher. E daí a nada o marido desta, em represália, matou-o a ele. Depois, os filhos do dono do cavalo, mais revoltados ainda, pegaram o fogo à casa do lavrador, deixando-o sem nada. Por fim, o lavrador, empunhando de novo a caçadeira, matou os filhos do dono do cavalo. E então o povo da aldeia, que se juntou a chorar e a comentar tamanha tragédia, só dizia:
–
Coisas do Diabo…
Ao
que o Diabo, que estava ao pé e a escutar tais comentários, reagiu:
–
Mas que fiz eu? Apenas soltei o cavalo!
Queria a narradora justificar, no seu engenho alegórico, como as coisas simples, insignificantes até, por vezes males-entendidos, pequenas brigas de que raramente se preveem as consequências, uma foto íntima ingenuamente partilhada numa rede social, podem ter efeitos devastadores. Mas poderíamos ainda ampliar a alegoria, na sua exegese, a uma multiplicidade de inquietações, como, por exemplo, o colocar uma simples cruz no retângulo de um voto, não imaginando como daí pode resultar uma reviravolta na vida de cada um, ou na vida de um país. Ou, até, perceber como num diálogo mal principiado entre nações pode estar a antemanhã de uma guerra.
É por estas e por outras que o povo metaforiza, na sua apurada sabedoria: “O Diabo sempre espreita nas frinchas”.
In JN, 14-2-2023