quarta-feira, 23 de março de 2022

A “Serração da Velha”: mas quem é a “velha” que esta noite vai ser serrada?

 

                                                                                                        (foto de: Antero Neto)

Celebra-se esta noite de 4ª feira (23 de março), a tradição da “Serrada da Velha”, também designada “serração da velha” ou “serra da velha”, um antigo ritual hoje em desuso, mantendo-se apenas em escasso número de comunidades rurais. É uma tradição com origem dos antigos ritos de passagem que simbolizavam a expulsão do Inverno. Embora seja hábito os rituais visarem as mulheres idosas quando avós, sujeitando-as a severas críticas, que por vezes dão azo a muitos excessos, o certo é que, e muitos desconhecem-no, a “velha”, neste ritual, não é mais do que uma figura simbólica, uma entidade mítica, conotada com as agruras da fome, privações, jejuns, repreensões e penitências quaresmais. A mitificação da “velha” é, de resto, muito frequente na tradição popular, como mostra a designação de “arco-da-velha” (um nome popular dado ao “arco-íris”), de “jogo da velha” (nome alternativo do “jogo do galo”), ou a “levada da velha” (nome de represa de água).

A “velha” é, pois, a Quaresma. Serrar a velha é serrar a Quaresma ao meio, em rituais protagonizados por adolescentes com atos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela Quaresma. Não é por acaso que, no calendário, a “serração da velha” acontece sempre numa 4ª feira, no dia exacto do meio da Quaresma. “Serrar a velha” é, pois, serrá-la ao meio, o que simboliza a expulsão do inverno, o esconjuro das trevas invernais, e a abertura para o tempo mais auspicioso da primavera.

A serração é, assim, o resquício de um culto pagão voltado para o esconjuro das trevas invernais, da esterilidade dos campos, almejando o rumo da luz esperançosa da primavera, o tempo da fecundação e procriação. Os rituais são, geralmente, protagonizados por adolescentes com actos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela Quaresma, e variam consoante a dinâmica interpretativa da cosmogonia das comunidades.

Em algumas, expõe-se num carro de bois um boneco de palha que é serrado e/ou queimado pelos rapazes com recitações versejadas de crítica social. Noutras, as mais comuns em Trás-os-Montes, são visadas as mulheres que no último ano hajam sido avós. Os rapazes, munidos de um embude, e serrando ruidosamente um toro oco de madeira, recitam as designadas “toradas” à porta das visadas, por vezes com severas críticas: “Ó tia Joana Micas / Vimos cá serrar-lhe as pernas / A ver se deixa de andar / Sempre a correr prás tabernas”. No cortejo, tomam lugar rapazes mais novos ainda, chamados de “netinhos”, que alternam as recitações com seus choros estridentes e prolongados.

Esta tradição mantém-se igualmente no Brasil, para onde foi levada pelos portugueses no Séc. XVIII, representando, não só uma espécie de pausa nos rigores das penitências quaresmais, mas também uma crítica à figura das avós pelos métodos punitivos a que sujeitavam as gerações mais novas, em especial as raparigas. Os excessos entretanto cometidos chegaram a tal ponto nos finais do séc. XIX, que teve de ser aplicada uma postura legal proibindo os chamados “serramentos de velhos” com uma multa de cinco mil réis aos infratores.

(ap)

Diário de Trás-os-Montes