Celebra-se esta noite de 4ª feira (23 de março), a tradição da “Serrada da Velha”, também designada “serração da velha” ou “serra da velha”, um antigo ritual hoje em desuso, mantendo-se apenas em escasso número de comunidades rurais. É uma tradição com origem dos antigos ritos de passagem que simbolizavam a expulsão do Inverno. Embora seja hábito os rituais visarem as mulheres idosas quando avós, sujeitando-as a severas críticas, que por vezes dão azo a muitos excessos, o certo é que, e muitos desconhecem-no, a “velha”, neste ritual, não é mais do que uma figura simbólica, uma entidade mítica, conotada com as agruras da fome, privações, jejuns, repreensões e penitências quaresmais. A mitificação da “velha” é, de resto, muito frequente na tradição popular, como mostra a designação de “arco-da-velha” (um nome popular dado ao “arco-íris”), de “jogo da velha” (nome alternativo do “jogo do galo”), ou a “levada da velha” (nome de represa de água).
A “velha” é, pois, a Quaresma. Serrar a velha é serrar a Quaresma ao meio, em rituais protagonizados por adolescentes com atos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela Quaresma. Não é por acaso que, no calendário, a “serração da velha” acontece sempre numa 4ª feira, no dia exacto do meio da Quaresma. “Serrar a velha” é, pois, serrá-la ao meio, o que simboliza a expulsão do inverno, o esconjuro das trevas invernais, e a abertura para o tempo mais auspicioso da primavera.
A serração é, assim, o resquício de
um culto pagão voltado para o esconjuro das trevas invernais, da esterilidade
dos campos, almejando o rumo da luz esperançosa da primavera, o tempo da
fecundação e procriação. Os rituais são, geralmente, protagonizados por
adolescentes com actos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela
Quaresma, e variam consoante a dinâmica interpretativa da cosmogonia das
comunidades.
Em algumas, expõe-se num carro de
bois um boneco de palha que é serrado e/ou queimado pelos rapazes com
recitações versejadas de crítica social. Noutras, as mais comuns em
Trás-os-Montes, são visadas as mulheres que no último ano hajam sido avós. Os
rapazes, munidos de um embude, e serrando ruidosamente um toro oco de madeira,
recitam as designadas “toradas” à porta das visadas, por vezes com severas
críticas: “Ó tia Joana Micas / Vimos cá
serrar-lhe as pernas / A ver se deixa de andar / Sempre a correr prás tabernas”.
No cortejo, tomam lugar rapazes mais novos ainda, chamados de “netinhos”, que alternam
as recitações com seus choros estridentes e prolongados.
Esta tradição mantém-se igualmente
no Brasil, para onde foi levada pelos portugueses no Séc. XVIII, representando,
não só uma espécie de pausa nos rigores das penitências quaresmais, mas também
uma crítica à figura das avós pelos métodos punitivos a que sujeitavam as
gerações mais novas, em especial as raparigas. Os excessos entretanto cometidos
chegaram a tal ponto nos finais do séc. XIX, que teve de ser aplicada uma
postura legal proibindo os chamados “serramentos de velhos” com uma multa de
cinco mil réis aos infratores.
(ap)