São as grandes vítimas deste maldito
flagelo. Buscaram refúgio nos lares de 3ª idade, almejando um fim de vida
calmo, um pôr do sol luminoso, menos solitário, rodeado do carinho que todo o
ser humano merece, especialmente, nesta fase da sua vida.
Muitos deles, dezenas e centenas, tesouros vivos da memória coletiva, foram sendo
meus parceiros no trabalho que abraço há décadas, enquanto etnógrafo. Guardiões
do passado, narradores da memória, permitiram-me resgatar testemunhos valiosos
de um património imaterial em risco, e desse modo soprar acendalhas para que se
faça um pouco mais de luz no entardecer dos seus dias.
Gente guerreira, que moveu pedras e
muralhas, construiu socalcos no Douro, gente mártir, torturada, que amargou
anos, meses, dias, mas ainda assim capaz de louvar a Deus numa soberana gratidão…
vejo-os partir, às centenas, tão ingloriamente nesta maldição que se abateu
sobre a humanidade, como se um deus-algoz, qual Prometeu acorrentado, soltasse
as amarras para com elas açoitar a terra, e assim mostrar quão efémera e
insignificante é a condição humana. Quão frágil é o planeta dos homens, onde um
simples abraço ou apenas o bafo de um olá podem pôr em causa a sobrevivência
dos que amamos.
São bibliotecas vivas que deveriam ser
eternas mas que se fecham e desmoronam abruptamente. Sofrem as famílias e os
amigos. E a sociedade empobrece. Quebra-se o fio da memória que a cada geração
incumbe passar à seguinte, para que a identidade de um povo tenha sentido. E
perdure.
A minha homenagem a todos, aos que
partiram e aos que resistem no silêncio dos seus recolhimentos. Devolvamos-lhes
um pouco do nosso tempo. Que as suas rugas multipliquem histórias que desejamos
ler e ouvir. Que sejam páginas de livros onde possamos continuar a aprender
lições de vida.
In Jornal de Notícias, 8-5-2020