As manifestações tradicionais de Carnaval, chamadas de
Entrudo, mantêm a sua originalidade no nordeste transmontano,
em especial com as figuras dos caretos de Podence,
Ousilhão, Baçal, Varge, Vilas Boas e Salsas, que personificam seres
sobrenaturais, herdeiros dos deuses diabólicos venerados na Roma antiga.
A fisionomia dos caretos, com suas
máscaras demoníacas, impondo um misto de terror e diversão, apresenta evidentes
semelhanças com as divindades das festas Lupercais romanas que eram celebradas
nesta altura do ano, em honra do deus Pã, também conhecido por “Fauno Luperco”.
Esta figura apresentava-se com aspeto diabolizado, cornadura de bode e corpo
peludo, perseguindo as pessoas que fugiam aterrorizadas. Note-se que uma
das funções dos caretos, em especial os de Podence, é também perseguir e
chicotear as pessoas, incutindo-lhes medo, especialmente às raparigas. Ignotos
nas suas máscaras de lata, chocalhos à cintura, fatos de franjas de cores
garridas feitas de linho e lã, percorrem os cantos da aldeia, entram e saem
pelas janelas das casas e alpendres, trepam aos telhados e arrastam para a rua
as raparigas indefesas, sujeitando-as ao barulho das chocalhadas e ensaiando
com elas rituais eróticos.
Estas e outras
tradições transmontanas (os famosos “Julgamentos do Entrudo”) assumem-se assim como
herança diluída dos velhos ritos romanos em honra do deus Pã, mas também do
deus Saturno, o deus da agricultura. Nas celebrações a esta divindade,
conhecidas como “Saturnálias”, era permitido que o poder dos senhores passasse
provisoriamente para aqueles que faziam produzir os campos: os escravos. Era um
tempo de inversão, prazer e exagero, em que estes passavam a ser livres, nas
palavras e nas ações, podendo expor e ridicularizar publicamente os seus
senhores
Entretanto, assistiu-se
a uma implícita apropriação do mito por parte do cristianismo. Entrudo procede
do latim “introitus”, que significa
entrada. Entrada em quê? Na Quaresma. Tal justifica haver uma despedida ruidosa
dos excessos e dos prazeres da carne (de onde veio a moderna designação de
“Carnaval”), confirmando-se assim o apurado sentido cristão do Entrudo, ainda
que o vejamos, como festa popular, inteiramente dominado por rituais pagãos.
AP
in Jornal de Notícias, 2-3-2019