sábado, 6 de junho de 2015

Onde está, afinal, esse “admirável mundo novo”?

 
Mostrou-me há dias, Raul Morais, investigador da UTAD, um robô que construiu com colegas e alunos, apto a entrar nos vinhedos escarpados do Douro e a auxiliar o agricultor nas suas árduas tarefas. Equipado com a eletrónica mais avançada, planeia trajetórias e, numa 1ª fase, entra pelos geios dentro, faz pesquisas sobre as necessidades das vinhas e o homem fará o resto. Numa 2ª fase, já será o robô a substitui-lo em muitas tarefas: pulverização inteligente, corte seletivo de matéria vegetal, entre outras.
 
Descendente que sou dos velhos lavradores que construíram a paisagem do Douro, hoje Património Mundial, que esculpiram os seus vinhedos, dotando-os de uma beleza ímpar, mas trabalhando, como ainda hoje, de sol a sol, numa luta espinhosa e desigual com a terra, não pude deixar de observar se não estará neste admirável modelo da robótica o lado mais esperançoso da profecia de Huxley, que há meio século inquietou a humanidade com o seu “Admirável Mundo Novo”, futurando uma sociedade escravizada pela tecnologia, com pessoas programadas em laboratório, surpreendidas por um rumo que nem sequer idealizaram, como se a tecnologia não fosse feita para o homem, mas o homem tivesse de ser feito para a tecnologia. Um quadro inquietante que, afinal, já aí está, numa geração de “nativos digitais”, dominados por tecnologias que avassalam sem defesa, crianças e jovens moldados pelo uso de tablets, smartphones, androids, iPhones, iPads; mas também nos paradoxos de uma sociedade moderna, em que os anseios de privacidade por vezes obsessiva das famílias esbarram com os prazeres da visibilidade nas redes sociais, expondo viagens íntimas, fotos e nomes dos filhos, e cada vez menos adotam atitudes críticas em relação às tecnologias.
 
Anima-me, por isso, que nesta investigação da UTAD refloresça o outro lado desse admirável mundo. O lavrador do Douro, que noutros tempos tinha ao seu lado filhos e netos, numa cumplicidade incondicional, filhos e netos que se vão esfumando nesta dureza de vida, pois já não se conformam com ela, um dia vê-lo-emos seguir pelos geios do Douro com um companheiro electrónico ao seu lado.
AP
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 6-6-2015