sábado, 5 de janeiro de 2013

A Festa dos Reis no Alto Douro

 [Três gerações de cantadores de reis]
 
            Se noites há em que o refúgio da lareira é uma espécie de bênção dos céus, que sítio melhor haverá para “sobreviver” nas noites geladas e ásperas de Janeiro? Contudo, na noite de Reis, sempre e religiosamente no dia seis, jamais houve borralho, por mais luzidio e crepitante que fosse, capaz de nos amarrar à lareira.
            A festa dos Reis começava com os ensaios à pressa no alpendre de meu avô, onde as sonoridades de velhas castanholas e pandeiretas, desenterradas dos sótãos, se ajeitavam como podiam às vozes de uma legião de estúrdios, já meio treinadas pela tradição. Depois, lá íamos desafiar a morrinha gélida, enchendo de um calor inesperado e milagroso as ruas e postigos da pequena vila do Alto Douro. Com os tamancos barulhentos, dava-nos gosto trilhar e estilhaçar o gelo dos charcos, e com os punhos esborraçávamo-lo nos tanques de chafariz, como quem aplica golpes de cutelo num inimigo feroz. Ninguém notava o frio.
            “Este ano, és tu o do saco, Zé!” - sentenciava um. “O do saco, eu?!” - exclamava o visado, entre aturdido e enlevado. É que o do saco, que recolhia o pecúlio e outras dádivas, era sempre o mais insuspeito, daí a honra de ser o eleito. Por fim, entre os mais afinados escolhia-se o solista, e o grupo começava invariavelmente assim:
 
                  Vimos dar as Boas-Festas,
                  Boas-Festas de alegria,
                  Já nasceu o Deus-Menino,
                  Filho da Virgem Maria!
  
Ainda a canção ia a meio e já a porta se abria, para que a luz da casa a todos acolhesse. E a mesa, embora já levantada da ceia, voltava a encher-se do bom e do melhor. “Quem é o do saco?” - perguntava de dentro uma voz meiga, anunciando uma malga de figos secos, ou uma abada de nozes, prontas a entrar para o bornal do Zé. Às vezes, porém, em casas de maior recato, para que a porta se abrisse tínhamos de orientar a preceito a cantoria:
 
                  Levante-se daí, senhora,
                  Desse banquinho de prata!
                  Venha-nos dar Santos-Reis,
                  Que está um frio que mata!

            E a porta, ainda que timidamente, lá acabava por abrir-se também. Ninguém resistia aos cantadores. Ai, se resistisse!... Havia sempre versos para desfiar em todas as circunstâncias:
 
                  Estas barbas de farelo
                  Não têm nada que nos dar:
                  Nem os restos da merenda,
                  Nem as sobras do jantar!

            A menos que houvesse luto na casa - e aí, sim, respeito absoluto -, ninguém tinha o direito de travar a alegria da noite. Uma alegria que distribuíamos, as mais das vezes, a troco de uma simples malga de figos. E quem é que não tinha, afinal, uma malga de figos para dar? Por isso não havia contemplações com os desmancha-prazeres:
 
                  Esta casa cheira a unto,
                  Aqui mora algum defunto!

            E se o egoísmo ou a avareza dos da casa eram já pecha reconhecida, também não havia perdão. Com voz de falsete, a malta entoava:
 
                  Nesta casa não cantamos,
                  Ali dentro cheira a sebo!
                  O tinhoso que lá mora
                  Ou é moiro ou é galego!

            Corríamos, a pente fino, as casas pobres e ricas. E não se aprimoravam as rimas só porque o senhorio era afidalgado ou pessoa de “teres”. Isso nunca. Mas onde cheirasse a “matança” recente, aí sim, valia a pena o esmero da cantoria:
 
                  Quem “diramos” nós que viva,
                  Na doçura dum confeito?
                  Viva lá o Ti João
                  Que é um homem de respeito!

            Às vezes o esmero do solista levava-o a fazer valer os seus méritos de versejador. E, com novo fôlego, lá acrescentava:
 
                  E respeito quem o tem
                  É homem rico a valer.
                  Abra a porta, Ti João,
                  E venha-nos receber!

            A porta abria-se num instante, como que movida por um acto de magia, e as vozes dos cantadores invadiam toda a casa. O anfitrião, a derreter-se de orgulho, ordena à mulher que encerte o fumeiro, e encarrega-se ele próprio de encher a pichorra. “Olhai que é o melhor pingato da terra!” - vai avisando, entre duas goladas e um sugestivo estalo da língua. Por fim, nós, os cantadores, “inspirados” pelas roscas de salpicão que já nos namoravam os olhos sobre a toalha de linho, tratávamos de pôr termo com chave de ouro à cantoria:
 
                  E p’ra acabar desejamos,
                  Com salpicão, vinho e broa,
                  P’ró Ti João muitos anos
                  E que lhos conte a patroa!

Era assim a noite de Reis, quase mística, quase divina, naquele altar da minha infância, que foi a pequena vila de Sabrosa, no Alto Douro.

 
Alexandre Parafita
(foto de: Fernanda Tabuada)