[Três gerações de cantadores de reis]
Se noites há em que o refúgio da
lareira é uma espécie de bênção dos céus, que sítio melhor haverá para
“sobreviver” nas noites geladas e ásperas de Janeiro? Contudo, na noite de
Reis, sempre e religiosamente no dia seis, jamais houve borralho, por mais
luzidio e crepitante que fosse, capaz de nos amarrar à lareira.
A festa dos Reis começava com os
ensaios à pressa no alpendre de meu avô, onde as sonoridades de velhas
castanholas e pandeiretas, desenterradas dos sótãos, se ajeitavam como podiam
às vozes de uma legião de estúrdios, já meio treinadas pela tradição. Depois,
lá íamos desafiar a morrinha gélida, enchendo de um calor inesperado e
milagroso as ruas e postigos da pequena vila do Alto Douro. Com os tamancos
barulhentos, dava-nos gosto trilhar e estilhaçar o gelo dos charcos, e com os
punhos esborraçávamo-lo nos tanques de chafariz, como quem aplica golpes de
cutelo num inimigo feroz. Ninguém notava o frio.
“Este ano, és tu o do saco, Zé!” -
sentenciava um. “O do saco, eu?!” - exclamava o visado, entre aturdido e
enlevado. É que o do saco, que recolhia o pecúlio e outras dádivas, era sempre
o mais insuspeito, daí a honra de ser o eleito. Por fim, entre os mais afinados
escolhia-se o solista, e o grupo começava invariavelmente assim:
Vimos dar as Boas-Festas,
Boas-Festas de alegria,
Já nasceu o Deus-Menino,
Filho da Virgem Maria!
Ainda a canção ia a meio e já a porta se abria, para
que a luz da casa a todos acolhesse. E a mesa, embora já levantada da ceia,
voltava a encher-se do bom e do melhor. “Quem é o do saco?” - perguntava de
dentro uma voz meiga, anunciando uma malga de figos secos, ou uma abada de
nozes, prontas a entrar para o bornal do Zé. Às vezes, porém, em casas de maior
recato, para que a porta se abrisse tínhamos de orientar a preceito a cantoria:
Levante-se daí, senhora,
Desse banquinho de prata!
Venha-nos dar Santos-Reis,
Que está um frio que mata!
E a porta, ainda que timidamente, lá
acabava por abrir-se também. Ninguém resistia aos cantadores. Ai, se
resistisse!... Havia sempre versos para desfiar em todas as circunstâncias:
Estas barbas de farelo
Não têm nada que nos dar:
Nem os restos da merenda,
Nem as sobras do jantar!
A menos que houvesse luto na casa -
e aí, sim, respeito absoluto -, ninguém tinha o direito de travar a alegria da
noite. Uma alegria que distribuíamos, as mais das vezes, a troco de uma simples
malga de figos. E quem é que não tinha, afinal, uma malga de figos para dar?
Por isso não havia contemplações com os desmancha-prazeres:
Esta casa cheira a unto,
Aqui mora algum defunto!
E se o egoísmo ou a avareza dos da
casa eram já pecha reconhecida, também não havia perdão. Com voz de falsete, a
malta entoava:
Nesta casa não cantamos,
Ali dentro cheira a sebo!
O tinhoso que lá mora
Ou é moiro ou é galego!
Corríamos, a pente fino, as casas
pobres e ricas. E não se aprimoravam as rimas só porque o senhorio era
afidalgado ou pessoa de “teres”. Isso nunca. Mas onde cheirasse a “matança”
recente, aí sim, valia a pena o esmero da cantoria:
Quem “diramos” nós que viva,
Na doçura dum confeito?
Viva lá o Ti João
Que é um homem de respeito!
Às vezes o esmero do solista
levava-o a fazer valer os seus méritos de versejador. E, com novo fôlego, lá
acrescentava:
E respeito quem o tem
É homem rico a valer.
Abra a porta, Ti João,
E venha-nos receber!
A porta abria-se num instante, como
que movida por um acto de magia, e as vozes dos cantadores invadiam toda a
casa. O anfitrião, a derreter-se de orgulho, ordena à mulher que encerte o
fumeiro, e encarrega-se ele próprio de encher a pichorra. “Olhai que é o melhor
pingato da terra!” - vai avisando, entre duas goladas e um sugestivo estalo da
língua. Por fim, nós, os cantadores, “inspirados” pelas roscas de salpicão que
já nos namoravam os olhos sobre a toalha de linho, tratávamos de pôr termo com
chave de ouro à cantoria:
E p’ra acabar desejamos,
Com salpicão, vinho e broa,
P’ró Ti João muitos anos
E que lhos conte a patroa!
Era assim a noite de Reis, quase mística, quase
divina, naquele altar da minha infância, que foi a pequena vila de Sabrosa, no
Alto Douro.
Alexandre Parafita
(foto de: Fernanda Tabuada)