Em tempos de crise e incerteza, seja de
uma comunidade, seja de uma nação, ou de um continente, é sempre valioso
recorrer à linguagem dos mitos, reinterpretando-os na sua simbologia. Não é em
vão que a mitologia grega ecoa no tempo como cerne da sabedoria antiga, trazida
por filósofos e poetas, na ideia de que a organização do mundo obedece aos
desígnios e caprichos dos deuses.
A Europa, Velho Continente, nasce de um mito: o mito de um rapto e sequestro de uma princesa com esse nome, filha do rei Agenor, que brincava livremente com as companheiras nos campos floridos da velha Fenícia. De beleza deslumbrante, personificava o tipo mais belo e doce que se podia imaginar. Daí que lhe não resistisse a gula de um deus supremo, Zeus, pai e soberano de um vasto roal de outros deuses, que a observava do Olimpo, e a raptou, transformado num touro gigante, transportando-a pelos mares para a ilha de Creta, onde, adotando a figura humana, a usou na sua luxúria e a fez rainha, deixando-a com três filhos, o mais velho Minos, futuro rei de Creta.
Quando o irmão de Europa, Cadmo, a procurou pelo mundo e a não achou, foi aconselhar-se com o oráculo de Delfos, que lhe lavrou a sentença: “Não continues a tua busca! A Europa, protegida por um deus, fundou uma nova Civilização! O mundo há de um dia render-se aos seus pés!”
E cumpriu-se a profecia. O nome da rainha de Creta ecoou de Nação em Nação, uniu culturas, religiões e etnias, aproximou os povos, construiu uma identidade. Hoje, Europa, novamente sequestrada, agora por interesses diabólicos, que alimentam duas guerras e acenam com o fantasma da sua desagregação, precisa de recuperar o sentido do velho mito, que serviu a Heródoto para lembrar que este mito guarda uma verdade, o que importa é saber interpretá-la. A Europa é, pois, uma invenção cultural, e, como diz T.S. Eliot, “se perecer como organismo espiritual, o que restará para a organizar materialmente já não será Europa”.
(ap)
In. JORNAL DE NOTÍCIAS, 18-4-2024