[Hoje, o Dia Internacional pela eliminação da Violência contra as Mulheres]
Um
dos trabalhos etnográficos que trago em mãos levou-me, por estes dias, até à
lenda de Nossa Senhora do Pereiro, em Santa Comba de Rossas, no concelho de
Bragança. Já se sabe que respeito muito as lendas, não tanto pelo conteúdo (em
alguns casos, preferia até nem o conhecer…), mas por achar nelas uma visão fundamentada
da cosmogonia popular, e poder, por essa via, conhecer o pensamento ancestral
do povo, percebendo também como, com o avançar dos tempos, esse pensamento
evoluiu. Não temos, pois, que aceitar as suas verdades, basta que consigamos
interpretar, ou decifrar, a sua dimensão simbólica. E assim perceber como as
lendas marcam sempre um espaço residual, nebuloso e ambíguo, da realidade,
acomodando-se nas frinchas e vazios de um conhecimento epistemológico mais
estruturado.
Reza
então essa lenda (e faço uso de uma versão que resgatei das memórias de uma
idosa no lar de Santa Comba de Rossas) que a Virgem apareceu na ramagem de um
pereiro (e daí o nome que tomou) a uma infeliz camponesa da aldeia, procurando confortá-la
por todos os dias apanhar uma grande sova do marido. E diz também que, numa
afirmação de solidariedade com o seu drama, a aconselhou a ter paciência com
ele, o esposo. Mais tarde, o homem morreu, ela professou e quando também morreu…
ficou santa.
Assim
o diz a lenda. E as lendas são assim mesmo. Uma espécie de foral que as
civilizações antigas legam às gerações vindouras, com os seus modelos de vida,
de virtude, crenças religiosas, instituindo prémios de resignação, vulgarmente
inspirados nas compensações obtidas pelos velhos mártires da Igreja tornados
santos após a morte. No caso de Rossas, o modelo é claramente o da resignação
perante a violência conjugal, como espelho do exemplo desses velhos mártires da
Igreja, modelos de submissão, recompensados após a morte.
Uma
mensagem que os tempos claramente corrigiram. Já nem as vozes mais autorizadas
da Igreja a suportam. Mulher nenhuma merece conselhos desse teor. Aos sacanas
que as maltratam, cadeia com eles. Ainda que alguns acenem com os cifrões e
milhões em que se movem, nenhum pecúlio deverá servir de “gratificação” a uma
mulher humilhada.
(ap)