Perante as notícias
mais otimistas que têm vindo a surgir sobre os valores inesperados e muito
animadores do défice do país, que ajudam a volatilizar os fedores da troika mas também a sublimar as “dores” de um infactível e apocalítico “memorando de
entendimento” a que passaram a chamar “geringonça”, dei comigo a recordar uma
parábola do filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860) sobre o dilema dos
ouriços:
Conta-se que numa noite
gelada de inverno, vários ouriços-cacheiros, vendo-se em risco de morrer de
frio, colaram-se uns nos outros para combatê-lo através do reforço mútuo do
calor que cada um conservava no seu minúsculo corpito. Porém, se era certo que,
quanto mais unidos estavam, melhor resistiam ao frio, também o era que, desse
jeito, a todo o momento se picavam com os espinhos. Assim, se por momentos, se
afastavam para não se ferirem, logo após cuidavam de se unir de novo para
continuarem a resistir àquele que era o perigo maior: morrer de frio. Mas
faziam-no com uma certeza: não era em vão esse sacrifício. Morrer de frio seria
sempre pior do que as dores das picadelas.
Não restam dúvidas de que,
nesta como em outras cogitações filosóficas de Schopenhauer, é indisfarçável a
sua conceção pessimista da vida, como se o prazer consistisse apenas na
supressão da dor, desígnio suportado por um paradoxo incontornável: quanto mais
próximos estão dois indivíduos, maior é a probabilidade de se ferirem mutuamente;
mas, mantendo-se distantes, também a angústia da solidão não parará de
consumi-los (e então como seria no amor, se o medo de magoarmos ou nos
magoarmos nos inibisse da aproximação à pessoa amada?).
Mas esta e todas as
metáforas têm ainda uma outra grande virtude: agarram-se como pastilha elástica
às mais prolixas semânticas. Dão para tudo e mais alguma coisa. Assim, quanto à
“geringonça”, o dilema agora é conseguir encontrar a distância ideal entre os
parceiros que a sustentam. Se no caso dos ouriços, a ambição é suportarem o
frio sem se picarem, no caso da “geringonça” deveria ser evitarem o mais
possível que as picadelas (ou ferradelas) de cada um venham a afrontar o rumo
esperançoso que o país tomou. Porque sem esperança nada se consegue. A penumbra
dos dias eterniza-se e as angústias coabitam sempre com os sacrifícios.
AP
in Jornal de Notícias, 21-4-2017