Os sinos foram,
durante séculos, um valioso meio de comunicação, em especial, nos meios rurais.
Davam às comunidades as notícias alegres e tristes, tantas vezes empoladas pelo
critério emocionado dos sineiros que imprimiam cunhos pessoais no manuseio dos
badalos, mas sempre num quadro de códigos partilhados no meio social
envolvente. E se reconhecermos como válida a teoria de Cazeneuve que considera
os mass media como “os meios cuja
finalidade habitual não reside na comunicação interpessoal, mas na transmissão
de uma mensagem de um centro emissor para uma pluralidade de receptores”, então
teremos nos sinos, com os seus efeitos, um dos mais originais meios de comunicação
social.
Remetidos hoje a
uma mera funcionalidade associada à marcação das horas e anúncio das missas
dominicais, há, contudo, a memória do seu uso como chamamento para os mais
diversos rituais, ora festivos, ora trágicos e angustiosos. Pelas características
do toque a finados, sabia-se se era morte de homem, de mulher ou de anjinho.
Nos toques a rebate, vinham os alertas de perigo, que se distinguiam caso se
tratasse de fogo, de invasão, saqueamento, caça a ladrões ou batida a animais
selvagens, incluindo para espantar a bicha nos campos. Os rebates desesperados
dos sinos apelavam sempre a um congraçamento colectivo na defesa dos interesses
em perigo.
Em muitas
aldeias transmontanas, no toque a finados, usa-se o sino maior do campanário,
na crença de que quanto maior for o estrondo para mais longe iria o demónio
naquela hora e não se aproximava do defunto. Segundo a tradição popular, o
demónio ciranda em torno do corpo procurando resgatar a alma, daí os vários
rituais de esconjuro que nesses momentos o povo costumava praticar, como é o
caso da infindável recitação das “Doze palavras ditas e retornadas”.
Outros toques de
grande representação simbólica, traduzindo todo um universo de codificações
socioculturais partilhadas, estão associados aos momentos do parto. É tradição
serem tocadas nove badaladas quando a mulher está a dar à luz, e em alguns
lugares é o marido que se ocupa dessa tarefa. Nesse momento, as mulheres que
andam nos campos interrompem os seus trabalhos e, num gesto de solidariedade
íntima com a parturiente, rezam nove ave-marias em apelo divino para que tudo
corra bem. E quando assim acontecia, noutros tempos, era costume dar-se uma
gorjeta ao sineiro para que repicasse os sinos em tom de festa.
Também se toca o
sino para afugentar as trovoadas, usando-se aquele que esteja virado para o
lugar onde se pretende que elas vão cair. Habitualmente, era a serra do Marão,
“por não dar palha nem grão”. A crença na eficácia dos sinos em tempos de
trovoada é grande entre a população transmontana. Reza a lenda que na
Castanheira, aldeia do concelho de Chaves, os sinos da igreja de S. João
tocavam sozinhos para anunciarem as trovoadas, o que permitia aos camponeses
regressarem dos campos a tempo de se protegerem e acautelarem os seus haveres.
E conta-se também que os galegos de uma povoação vizinha, ao saberem desse dom,
foram lá de noite roubá-los, e que, depois de recuperados pelos seus legítimos
donos, nunca mais tocaram sozinhos. Para uns ficou a suspeita de que os
trocaram, para outros vingou a certeza de que a virtude dos sinos se extinguira
no percurso pecaminoso e infecto a que foram sujeitos.
Há outras lendas
que narram toques misteriosos sem a presença de qualquer sineiro. Aludem, por exemplo,
ao dia da restauração da independência no ano de 1640, em que muitos tocaram
sozinhos num impulso solidário e patriótico contra os espanhóis, numa altura em
que ainda não tinham chegado a terras tão longínquas as notícias do golpe dos
conjurados. Há também alusões a sinos que tocaram sozinhos vaticinando outras
alterações políticas marcantes, inclusive a morte do rei D. Sebastião nas
longínquas terras de Alcácer Quibir.
Não faltam
também lendas de sinos que narram a sua fuga misteriosa das igrejas onde foram
colocados, indo aparecer no local onde pretendem que uma outra igreja ou capela
sejam construídas. Este contexto traduz geralmente conflitos de vizinhança, com
constantes transladações dos sinos para diferentes locais em função das
conveniências dominantes nas comunidades. E perante questões terrenas desta
ordem, importa que haja uma resposta do Céu, traduzida na fuga do sino à
revelia da mão humana.
Há ainda um
fulgor etnográfico notável na linguagem simbólica dos sinos com as respectivas
descodificações que as diferentes comunidades alimentam, geralmente à luz dos
seus caprichos, quezílias e rivalidades. Atribuem-se, na região transmontana,
diálogos aos sinos nos concelhos de Vinhais, Bragança, Mogadouro, Carrazeda de
Ansiães, Chaves e Alfândega da Fé. Neste último, o sino da capela da
Misericórdia diz: “Tem lêndeas, tem
lêndeas, tem lêndeas!”. O sino da capela do Mártir de S. Sebastião
responde: “Tira-las, tira-las, tira-las!”.
Da capela do Espírito Santo, pergunta-se: “Com
quê? Com quê? Com quê?”. E o sino maior da igreja matriz responde: “C’os dentes, c’os dentes, c’os dentes!”.
Alexandre Parafita
in Diário de Trás-os-Montes